O Benjamim Guimarães e a venda de 1938

 

            Pela escritura de promessa de compra e venda de 25 de março de 1938, firmada no 4o Ofício de Notas de Belo Horizonte (MG), a Sociedade Anônima Ferreira Guimarães, com sede no Rio de Janeiro, então capital federal, prometeu vender para a Navegação e Comércio do São Francisco S.A., com sede em Pirapora (MG), o navio a vapor Benjamim Guimarães, do qual era a única proprietária, bem como o navio Francisco Bispo, as chatas Mineira, Santa Maria e 12 de Agosto.

            O Benjamim Guimarães e as demais embarcações já haviam sido entregues à Navegação e Comércio do São Francisco S.A. no dia 22 de março de 1938, passando a correr por conta desta empresa as despesas de custeio e conservação do vapor.

            Mediante a aludida escritura de 25-3-1938 a Sociedade Anônima Ferreira Guimarães também prometeu vender à Navegação e Comércio do São Francisco S.A. os seguintes bens:

a) um armazém, coberto de telhas, à Rua Rio Grande do Sul, em Pirapora, e respectivo terreno, adquirido de Washington Barreto em 3-12-1925; b) domínio útil de um terreno, igualmente à Rua Rio Grande do Sul, contíguo ao terreno antes citado, comprado de José Martins Pereira em 22-8-1925; c) Fazenda “Baluarte”, situada no termo de Coração de Jesus, com a sede à margem do Rio São Francisco, adquirida de Rotilho de Souza Manduca.

            Ainda por meio da referida escritura de 25-3-1938, Júlio Mourão Guimarães, juntamente com sua esposa, prometeu vender um terreno, do qual era único proprietário, situado em Pirapora (MG), no quarteirão formado pelas ruas Goiás, São Paulo, Rio de Janeiro e Avenida Amazonas. No terreno, existiam (guarnecidas com máquinas, móveis e utensílios) as seguintes construções: a) três armazéns em que no primeiro havia o escritório; no segundo, uma seção de beneficiamento de algodão; e no terceiro, o almoxarifado; b) dois galpões de madeira, em um deles funcionava uma serraria e oficina mecânica; c) duas casas, para residência dos empregados.

            A Sociedade Anônima Ferreira Guimarães e Júlio Mourão Guimarães se comprometeram a vender os bens pelo preço total de Rs 1.200:000$000 (um mil e duzentos contos de réis). Para os bens pertencentes à Sociedade Anônima Ferreira Guimarães foram acordados os preços que seguem: i) pelo armazém à Rua Rio Grande do Sul e respectivo terreno, bem como pelo domínio útil do terreno anexo, Rs 15:000$; ii) pela “Fazenda Baluarte”, Rs 35:000$; iii) pelas cinco embarcações, Rs 600:000$. Para o terreno, as construções, as máquinas, os móveis e os utensílios, pertencentes a Júlio Mourão Guimarães, ajustou-se o pagamento do montante de Rs 550:000$.

Com relação ao preço total de Rs 1.200:000$, pactuaram-se as seguintes condições de pagamento:

a) Rs 200:000$ (duzentos contos de réis), pagos em 25-3-1938, a título de sinal, mediante cheque emitido contra o Banco Comércio e Indústria de Minas Gerais, a favor da Sociedade Anônima Ferreira Guimarães;

b) O restante do preço de Rs 1.000:000$ (um mil contos de réis) será pago em vinte prestações mensais, adicionadas dos juros de 8% anuais, calculados pela Tabela Price, cada uma na quantia de Rs 53:573$620, correspondente ao capital mais juros. Ficou acordado o vencimento sucessivo dessas prestações no dia trinta de cada mês, vencendo-se a primeira em 30‑4‑1938. Portanto, a última parcela de Rs 53:573$620 deveria ser paga em 30‑11‑1939. Cada fração seria liquidada mediante depósito no Banco de Minas Gerais para crédito da Sociedade Anônima Ferreira Guimarães, em Belo Horizonte, que estava investida de poderes para receber também as frações pertencentes a Júlio Mourão Guimarães.

            A Sociedade Anônima Ferreira Guimarães foi representada no ato pelo seu procurador Antônio Mourão Guimarães e também pelo seu diretor Júlio Mourão Guimarães. Este último, portanto, não apenas assinou a escritura na qualidade específica de representante da companhia para fins de validar a alienação dos bens da empresa, mas também tratou da venda dos seus próprios bens, bens absolutamente distintos. Fique claro que, na ocasião da venda, o vapor Benjamim Guimarães pertencia, exclusivamente, à empresa comercial Sociedade Anônima Ferreira Guimarães; não pertencia a Júlio Mourão Guimarães.

O coronel Benjamim Ferreira Guimarães, diretor da companhia, por possuir 56% das ações totais, mais da metade do capital social, detinha o controle e o comando da sociedade. Júlio Mourão Guimarães, uma vez que participava com apenas 5% do capital acionário, devia ter muito menor poder de decisão, embora fosse um dos diretores da empresa.

            Cabe darmos algumas informações ao leitor sobre as empresas envolvidas na transação em exame.

A Navegação e Comércio do São Francisco S.A. foi constituída no dia 27 de dezembro de 1937, em Pirapora, ao se reunirem em assembléia geral subscritores de 3.739 ações. O capital subscrito montava a Rs 1.000:000$000 (mil contos de réis), dividido em 5.000 ações de Rs 200$000 (duzentos mil-réis) cada uma. De acordo com os estatutos, a finalidade da sociedade era explorar o transporte de mercadorias e passageiros do Rio São Francisco e afluentes e também o comércio de produtos da região. Depois, a antiga Navegação e Comércio do São Francisco S.A. mudou sua designação para Companhia de Navegação do São Francisco.

A diretoria, eleita e imediatamente empossada, ficou assim constituída: diretor‑presidente, comandante Otávio Monteiro Machado, residente em Belo Horizonte; diretor‑gerente, Quintino Vargas, comerciante, residente em Paracatu; diretor‑tesoureiro, Emanuel de Souza Lima, engenheiro-civil, residente em Belo Horizonte. Participava do conselho fiscal, como membro efetivo, Júlio Mourão Guimarães, industrial, residente em Mariana (MG). O verdadeiro administrador era o diretor-gerente, auxiliado pelo diretor‑tesoureiro. Portanto, o efetivo dirigente dos negócios dessa sociedade comercial foi Quintino Vargas. O presidente tinha apenas funções de natureza administrativa e representativa.

            Em 30 de dezembro de 1940, a Sociedade Anônima Ferreira Guimarães passou a denominar-se Companhia Têxtil Ferreira Guimarães, a fim de cumprir a determinação do art. 3o do Decreto-Lei no 2.627, de 26-9-1940, o qual dispunha que a companhia deveria ser designada por denominação que indicasse as suas finalidades e permitia que o nome do fundador ou de acionista que tivesse concorrido para o êxito da empresa figurasse na denominação.

A 27 de fevereiro de 1942, foi firmada no 2o Ofício de Notas de Pirapora a escritura pública definitiva de compra e venda das embarcações, instalações, máquinas, imóveis e móveis antes referidos, entre os vendedores Companhia Têxtil Ferreira Guimarães e Júlio Mourão Guimarães e a compradora Companhia de Navegação do São Francisco, com a intervenção da Companhia Indústria e Viação de Pirapora. Esta companhia interveniente teve por representante o diretor Otacílio Negrão de Lima.

A Companhia de Navegação do São Francisco havia pago até 27‑2‑1942, em prestações, somente o montante de Rs 517:162$400, correspondente à soma da amortização de parte do preço de Rs 1.000:000$000 e de juros antes acordados na promessa de compra de março de 1938. Ambos já deveriam ter sido integralmente quitados até 30‑11‑1939, conforme dissemos. Restavam, portanto, capital e juro ainda a pagar com atraso de dois anos e três meses.

Em decorrência de entendimento havido em Pirapora a 15‑9‑1941, a Companhia Indústria e Viação de Pirapora comprometeu-se a satisfazer aos vendedores o restante do preço e dos juros ainda não quitados pela compradora. Verificou-se então que o saldo do principal e dos juros a pagar era de Rs 679:595$200. Assim, a Companhia Indústria e Viação de Pirapora pagou aos vendedores, em 30-9-1941, a quantia de Rs 319:895$200, através de estabelecimento bancário. Para o saldo devedor de Rs 359:700$000 (679:595$200 menos 319:895$200), assumiu o compromisso de liquidá-lo mediante a emissão de cinco notas promissórias, nos valores de Rs 67:980$000, Rs 69:960$000, Rs 71:940$000, Rs 73:920$000 e Rs 75:900$000, e vencimentos, respectivamente, para 30‑1‑1942, 30‑5‑1942, 30‑9‑1942, 30‑1‑1943 e 30‑5‑1943.

Como a Companhia Indústria e Viação de Pirapora resolveu, posteriormente, afastar-se da transação comercial em causa, houve novo entendimento em 14‑11‑1941 pelo qual os vendedores e o comprador concordaram que os títulos emitidos pela companhia interveniente fossem substituídos por outras cinco notas promissórias sacadas pela Companhia de Navegação do São Francisco, com os mesmos valores e vencimentos. Embora a Companhia Indústria e Viação de Pirapora tivesse pago a importância de Rs 319:895$200, em 30‑9‑1941, as quatro partes contratantes acordaram em 14‑11‑1941 que a escritura definitiva de compra dos referidos bens fosse lavrada, como de fato o foi, em nome da Companhia de Navegação do São Francisco, findando quaisquer responsabilidades entre a Companhia Indústria e Viação de Pirapora e os vendedores.

A partir da escritura definitiva de 27 de fevereiro de 1942, a Companhia de Navegação do São Francisco passou a ter pleno domínio sobre o vapor Benjamim Guimarães, sobre as demais embarcações e sobre os outros bens antes mencionados. Não nos esqueçamos, no entanto, de que o vapor Benjamim Guimarães e as outras quatro embarcações já haviam sido entregues à compradora no dia 22‑3‑1938, data a partir da qual começaram a navegar sob a bandeira e a responsabilidade da referida sociedade anônima. O vapor Benjamim Guimarães ficou como propriedade da empresa até 31‑5‑1943, quando ela foi incorporada à Companhia Indústria e Viação de Pirapora.

Para evitar possível dúvida, salientamos que, embora com o mesmo nome, a sociedade de capitais exclusivamente privados designada por Companhia de Navegação do São Francisco, fundada em 27-12-1937, foi empresa distinta da sociedade de economia mista denominada Companhia de Navegação do São Francisco‑FRANAVE, constituída, posteriormente, em 24-1-1963.

Fernando da Matta Machado

            Artigo publicado no jornal CORRENTE, de Pirapora, Minas Gerais, ano XXVII, no 1.051, de 6 de agosto de 2004. Edição especial em homenagem à volta do vapor Benjamim Guimarães ao São Francisco.

            Republicado na Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais, Belo Horizonte (MG), número XXVII, de 21 de abril de 2005, páginas 348-352

 

 

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Rio de Janeiro (RJ), 21 de agosto de 2008