Tijuco — lendas e tradições

 

 

 

 

Autor

Edgard Matta

 

 

 

Organização e introdução

Fernando da Matta Machado

 

 

 

Este texto pode ser livremente reproduzido, parcial ou integralmemte, por meio mecânico, digital ou por qualquer outro meio, desde que mencionadas a autoria de Edgar Matta e a organização de Fernando da Matta Machado.

 

 

Copyright da organização e da introdução © 2008 Fernando da Matta Machado

 

Rio de Janeiro (RJ), 21 de agosto de 2008

 

 

 

 

 

 

 


Introdução

 

            Edgard da Matta Machado (nome literário Edgard Matta) nasceu em Ouro Preto a 21 de outubro de 1878[i] e faleceu em Diamantina a 26 de fevereiro de 1907 com apenas 28 anos de idade. Filho de João da Matta Machado e de Luiza Henriqueta Bessa da Matta Machado.

            Poeta e prosador participante do movimento estético e literário denominado Simbolismo.          

            Pronunciou a palestra Tijuco — lendas e tradições no dia 19 de setembro de 1900 nos salões do Clube das Violetas, em Belo Horizonte, Minas Gerais, época em que fazia parte do grupo, constituído naquela cidade, que se intitulou de Jardineiros do Ideal. Tijuco era o nome antigo da atual cidade de Diamantina (MG).

             Compunham o grupo doze intelectuais — jornalistas, acadêmicos, engenheiros e advogados — que se reuniram e formaram um centro com a finalidade de realizar uma série de palestras. Pretendiam desenvolver os meios para estimular a literatura e para produzirem mais e o melhor possível no romance, na história, no conto, na comédia. Os doze Jardineiros do Ideal eram: Afonso Pena Júnior, Artur Lobo, Assis das Chagas, Aurélio Pires, Edgard Matta, Ernesto Cerqueira, Ismael Franzen, Josaphat Bello, Lindolpho Azevedo, padre João Pio, Prado Lopes e Salvador Pinto Júnior. Publicaram um pequeno jornal de nome Violeta.

            Proferiram dez palestras no Clube das Violetas no período de 18 de julho a 19 de setembro de 1900. A convite dos jardineiros mais duas conferências foram feitas por convidados não membros do grupo, e o ciclo encerrou a 10 de outubro. O jornal Minas Gerais publicou o conteúdo integral de umas palestras e a quase totalidade do teor de outras.      

            O texto Tijuco — lendas e tradições que ora divulgamos foi publicado no jornal Minas Gerais de 21 a 24 de setembro de 1900. É para nós o texto-fonte.

            Na transcrição, o organizador adotou os seguintes critérios básicos:

a) atualizou a ortografia, de acordo com o sistema vigente em 2008;

b) emendou os lapsos tipográficos e os lapsos de pena óbvios;                  

c) respeitou rigorosamente a pontuação original;

e) manteve, de regra, o emprego das iniciais maiúsculas pelo autor, tendo em mente o valor de seu uso entre os simbolistas. Fizemos poucas alterações, quando o vocábulo nos pareceu não estar sendo utilizado em sentido elevado ou simbólico.

            Estamos incluindo a matéria publicada naquele mesmo jornal em 20-9-1900 sobre Edgard Matta e sua palestra.

            Nossos agradecimentos a Eduardo de Miranda Mata Machado por ter colocado disponível para esta publicação a fotografia de Edgard Matta.

            Somos gratos a Pablo Barros Dias pela conferência do texto por nós digitado em computador com o original publicado no jornal Minas Gerais e pelas correções indicadas.

            Agradecemos também a Ivan Luiz da Matta Machado, Lúcia da Mata Barbosa (in memoriam), Maria Apparecida da Matta Machado Avvad, Newton de Figueiredo, Reinaldo da Matta Machado e Vera Matta Machado Diniz a pesquisa com a finalidade de obter uma outra fotografia do poeta, além da agora publicada.

 

Fernando da Matta Machado

 

            Artigo publicado no Minas Gerais a 20-9-1900 sobre a palestra de Edgard Matta.

 

            Dos que atualmente, em terra mineira, terçam as suas primeiras armas, tentando o verso, fazendo prosa e explorando os diversos ramos de literatura, Edgard Matta sobressai e se impõe, seja no trato afabilíssimo com que sempre acolhe os que o procuram, seja nos belos sonetos que toda a gente de bom gosto fica conhecendo de cor e nos quais se aparece e vibra algo de exótico, de pouco comum, ainda é para afirmar bem a sinceridade com que o seu autor escreve, fala e se pronuncia. Para os que conhecem Edgard Matta essa nota estranha, que a muitos leva o espanto, causando em outros tímidos espíritos um certo pavor, como se estivessem diante de um moço de grande talento que reunia o melhor das suas forças para derrocar os velhos moldes em que se criaram as outras gerações e nos quais se fizeram os seus poetas ou cronistas prediletos, ainda é um motivo a mais para lhe admirarmos a sobranceria e desassombro com que ele poetiza o seu sentimento, envolvendo-o de verdade, deixando em cada estrofe, sonora e de uma inusitada harmonia, um grande vestígio das magníficas virtudes que lhe vão n’alma generosa, um dos maiores encantos para quantos com ele privam intimamente e para os que o têm acompanhado na sua ainda curta, mas auspiciosíssima carreira literária.

            E quem o vir com a sua basta cabeleira negra, o seu olhar vivo, que a gente jamais esquece, tanto nele se espelham as irradiações daquele espírito que fulgura com raro brilho, há como que uma imensa simpatia a prender a nossa atenção, a arrastar-nos em seu seguimento, quando o vemos, calmo, despreocupado, quase sempre rodeado de amigos, a passear pelas nossas avenidas e por estas serras que nos circundam e onde ele, como que procura algum trecho, um canto de natureza que se pareça ou que lhe relembre os que lá viu deste Tijuco e em todo norte de Minas, donde trouxe essa nostalgia que se patenteia no seu verso, na sua crônica ou em simples palestra, entre camaradas e companheiros.

            E nos sonetos de Edgard Matta, que têm merecido os mais francos elogios de Artur Lobo, Alphonsus de Guimarães, Adolfo Araújo e outros que podem e têm o direito de julgar e dizer a respeito, a linguagem, a rima, as estrofes são fortes, másculas com a sua inteligência, que há de ser, em não remoto futuro, melhor conhecida quando tivermos reunidos em livro os primorosos versos com que ele anda a decorar as páginas dos pequenos jornais, de vida efêmera.

            Edgard Matta, apesar da estranheza que os seus trabalhos provocam, não é um incompreendido, porque quem tiver lido uma das suas produções, qualquer, ao acaso, não se esquecerá jamais do seu nome, porque elas impressionam e nos ficam para todo o sempre gravadas na memória, de que se tornam o mais precioso ornamento. E são páginas que a gente conserva para repetir depois de si para consigo, nos dias de desalento, quando procuramos alguma cousa de suave e boa para lenir os travos amaros que a existência proporciona, quotidianamente.

            Conhecido como era, Edgard Matta teve um auditório digno da palestra que fez, e que nos veio revelar mais uma faceta da sua intelectualidade, porque a sua prosa, que aliás pouco conhecíamos, corre parelhas com os seus versos que admiramos. Que o público foi perfeitamente compensado de, arrostando a ruindade da noite, ir até ao Clube das Violetas, também garantimos, pois o silêncio com que ouviu durante setenta minutos a encantadora palestra de Edgard Matta e os aplausos prolongados com que o saudou e os elogios que à saída, muitos que lá foram lhe fizeram, reforçam o que avançamos.

            Edgard Matta é um simbolista, um rebelado, para aproveitar palavra da gíria dos discípulos dos poetas satânicos, mas, que bonito e delicioso seria o simbolismo, se nos oferecesse sempre, como ontem, aqueles esplêndidos pedaços de prosa, em frase nova, portuguesa de lei, e se nos desse daquelas jóias de que Edgard Matta apresentou uma das gemas mais valiosas! E só por tratar das pedrarias do opulento Tijuco, como que a sua palestra transmitia iguais cintilações, luz idêntica, chispando a sua frase pelo valor da sua palavra.

            E, para que o público veja que apenas fazemos justiça ao poeta e compatrício que nos honra, começaremos amanhã a publicação da sua palestra, para ela pedindo a melhor atenção dos nossos leitores.

            Assistiram à palestra de Edgard Matta os senhores:

            Drs. Salvador Pinto e família, Carlos Ottoni e família, Cornélio Vaz de Melo e família, Teófilo Pereira Júnior e família, Domingos Chaves, Ismael Franzen, Assis Lima, Rodolfo Jacob, Josaphat Bello, Alfredo Guimarães, Luiz Gomes Ribeiro e os srs. comendador Steckel e família, major Carlos Meireles, tenente Paula Sousa, Ferreira Real e família, coronel João Viana e família, Gustavo Farnese e família, Alfredo Furst, João Mourão e família, Jaime Dolabela, Goursand de Araújo, Marcílio Costa, Antenor Horta, Marcos Rios, João e Aires da Matta Machado, Ataliba Pires, Antônio da Costa Pereira, Fernando Melo Viana, Benjamin Paula Lima, Francisco Neves, Vieira Marques, Ernesto e Alberto Cerqueira, Afonso Pena Júnior, Salvador Pinto Júnior, afora muitos outros acadêmicos, funcionários e diversas pessoas cujos nomes não guardamos. Vimos também as famílias dos srs. dr. Américo Werneck, coronel Ignácio Magalhães e deputado Matta Machado.

            Da imprensa local estavam os srs. Celso Werneck, João Camelo e Alisson Lobo, do Diário de Minas; João Caetano, do Jornal do Povo; Francisco Murta e Assis das Chagas desta folha.

            A parte musical foi perfeitamente executada e em boa hora entregue ao modestíssimo e apreciado virtuosi sr. Antônio da Costa Pereira.

 

 

 


 

 

 

 

 

Foto de Edgard da Matta Machado.

Fotografia pertencente a Eduardo de Miranda Mata Machado.

O original está datado no verso, com a dedicatória: “Ao Ayres e ao Octavio, o Edgard Matta. Rio, 2 janeiro 99”.

 

 

 

 

 

 


 

 

 

 

 

 

Verso da foto de Edgard da Matta Machado.

Fotografia pertencente a Eduardo de Miranda Mata Machado.

Lê-se na dedicatória: “Ao Ayres e ao Octavio, o Edgard Matta. Rio, 2 janeiro 99”.

            O fotógrafo foi “J. Gutierrez, successor da Companhia Photographica do Brazil. Rua Gonçalves Dias, no 40. Rio de Janeiro”.

 

 

 


 

Tijuco — lendas e tradições

Edgard Matta

 

 

            Quando me vi forçado a procurar um tema para a palestra de hoje, meu espírito oscilou indeciso e senti que a esterilidade subjetiva se refletia em todos os terrenos tornando áridos esses campos ubérrimos que só esperam o pólen fecundador da Idéia para a germinação frondente das grandes obras de Arte.

            Invejei o artista que sabe descobrir o embrião de um poema na tênue modalidade do aroma e da cor que cria a Epopéia do Verme como criaria a dos deuses, que aproveita o episódio insignificante da análise como as abstrações universais da síntese mais ampla.

            Num tantalismo doloroso contemplando em aparições difusas todas as grandes épocas da história, desde esta idade remotíssima e velha que vemos, sem delineamentos nítidos de figura e de forma, nas fronteiras impenetráveis do Sonho e do Mistério, meu espírito vagou absorto vendo o desfilar apoteósico desses grandes titãs da idade antiga cujos assombrosos feitos nos soam hoje aos ouvidos como inverossímeis legendas de epopéias divinas.

            As pirâmides do Egito projetaram sobre mim, acabrunhadoramente, as sombras pesadas de seus perfis gigantescos, causticados pelos sóis priscos das eras, imóveis no deserto como páginas abertas de um livro de granito onde se lê ainda hoje a história emocionante das civilizações primitivas.

            Das ruínas de Tebas soprava uma brisa embalsamada de legendas, mas dessa abundante seara já colhida, nada restava para o segador bisonho.

            No berço do mundo vi surgir o esplendor oriental de Babilônia, e logo após a Índia num Policromismo de lendas de religiões estranhas, de tradições fabulosas, entre as quais parecia errar a figura sentimental de Çakia-Muni, o Buda, pregando a religião igualitária, a abolição das castas, espalhando por todos os sofrimentos o bálsamo anestesiante das resignações supremas.

            E Purna, o seu discípulo amado, numa melancolia de contemplativo, tem um sorriso de perdão para todos os Males, e flutua entre nimbos nirvânicos de aniquilamento, a alma desprendida do corpo que as paixões não inflamam, no quietismo sublime da Religião Sombria.

            Mas, exmas. senhoras, sobre o Oriente falou nesta sala Ernesto de Cerqueira, e eu não me animaria a vir perturbar a impressão sonora que o seu talento deixou, nem a sugestão mágica dessa terra de Sonhos que ele soube decerto fazer nascer em cada uma de vós que o ouvistes.

            Pensei, e ser-vos-ia talvez mais grato, em vos trazer aqui trechos das grandes epopéias dos Árias, destacar desses livros imortais, pérolas e diamantes de inestimável valor, dando-vos uma vaga noção da Alma artística que vibra sonora e emocionante nas páginas do Mahabharata.

            Mas para isso necessário seria um conhecimento completo dessas obras, e só assim poderia provar-vos que a obra de Arte não se aniquila e envelhece com a sucessão do tempo e das escolas, se bem que essas correspondam às necessidades emotivas de cada época.

            Só assim vereis que essa moral perfeita que o cristianismo implantou, vivia já nessas épocas remotas com seus dogmas imperecíveis, com seus princípios eternos; que os mesmos sentimentos, as mesmas emoções, os mesmos desejos que fazem vibrar os nossos corações, existiam na alma desses nossos irmãos de séculos perdidos. O amor, as abnegações pelo próximo, os afetos, vemo-los descritos com uma intensidade talvez ainda maior que nos dias de agora, em que infelizmente se têm levantado catedrais ao egoísmo, nas quais o oficiante adora o próprio ídolo.

            Mas abandonando esse assunto e continuando a pesquisa transpus o Peristilo Gótico da Idade Média e ouvi ainda o surdo rumor longínquo, dum desmoronamento de Impérios; mas dentro em pouco todos os grandes acontecimentos políticos velaram-se, desvaneceram-se através de uma nuvem densa de incensos religiosos por onde flutuam cânticos e rezas de um misticismo fanático. Em laboratórios estranhos homens envelheciam nas maquinações inúteis de uma ciência infantil.

            Em tudo pesava uma atmosfera densa e irrespirável resultante da fusão de elementos heterogêneos, necessitando de uma ação de presença para que as afinidades se manifestassem e a homogeneidade surgisse anunciando uma era de luz e de progresso. Essa ação necessária de presença foi trazida pelos grandes acontecimentos: A Descoberta da América e caminho das Índias, a revolução artística de Rafael e Miguel Ângelo, a revolução científica de Copérnico, a Descoberta da Imprensa e finalmente a voz de Lutero cindindo o Catolicismo.

            Foi assim, minhas senhoras, que meu espírito depois de vagar perdido pelo terreno da história como aquele que melhores elementos poderia fornecer a quem se sentia fraco para as criações originais, descobriu bem perto de si, no próprio torrão natal, o assunto nacional de indiscutíveis interesses, e que certamente vos proporcionaria uma palestra agradável, se tratado por outro.

            Como deveis saber, ocupar-me-ei nesta palestra das tradições do Tijuco e sucintamente de um período de sua história, história dolorosa de Lágrimas e de Agonias, tradições de heroísmo e de martírio, a que certo não poderei, como desejava, emprestar a narração emocionante, para que, senhoritas, os vossos olhos se magoassem na contemplação de uma das mais dolorosas páginas da nossa história colonial.

            É do Tijuco, senhoritas, que vem grande parte dessas pedras preciosíssimas com que vos adornais para as festas, e o oiro dos vossos braceletes dormiu outrora ignorado nas serras alcantiladas daquela terra infeliz.

            Perdoar-me-eis, por certo, se em vos apresentando um diamante de subido valor, fizer desaparecer o sorriso que a vaidade desperta, contando-vos que o diamante do Tijuco é a cristalização de uma lágrima, e que essa lágrima correu talvez por uma face tão gentil e tão meiga como as vossas.

            Tereis decerto mais carinho, para as vossas jóias, quando souberdes que cada pedaço de oiro representa uma epopéia de dor, que cada pedra rutilante que trazeis nos anéis custou, antes de algumas moedas, agonia sacrificadora de um povo irmão. E quantas vezes a maldição dos perseguidos tombou sobre o metal e a pedra que o convencionalismo e o luxo valorizaram!

            Quanta lágrima, quanto soluço poupado, quanta injustiça inclemente, não se teria consumado se o solo abençoado daquela terra não tivesse escondidas essas preciosidades inúteis!

——

 

            Bandos de aventureiros que a ambição movia destemidos e fortes, embrenhavam-se pelas florestas seculares e virgens, afrontando sacrifícios e perigos, sem que nada os detivesse na carreira maldita, indo ao recesso íntimo das tabas arrancar o gentio leal para o martírio sem nome do cativeiro perpétuo.

            A resistência natural agindo, travavam-se mortíferas guerras e o solo da Pátria bebia o primeiro sangue iniquamente derramado; num desprezo cruel para com todas as leis da Justiça e da Moral, esses bandos ferozes arrancavam das Missões Jesuíticas os selvagens que se haviam entregado à catequese e que abraçavam a religião Santíssima da Cruz.

            Foi numa dessas correrias injustificáveis, que um aventureiro encontrou a primeira mina de oiro, e espalhada essa nova, de todos os pontos da colônia afluíram homens na procura difícil do precioso metal.

            O primeiro oiro foi encontrado na Capitania de São Paulo e as bandeiras que se formavam buscavam os desertos, revolvendo terras, desviando rios, penetrando em cavernas, na sede insaciável de riquezas, de régias fortunas, de opulências Nababescas.

            Para Minas dirigiram-se diversas bandeiras e em vários pontos da Capitania o metal amarelo brilhou no fundo das bateias; na comarca do Serro Frio, descobriram-se riquíssimas jazidas, mas a nevrose do oiro impelia esses homens a novas descobertas, como se não houvesse na terra riqueza bastante para saciar-lhes a ambição sem limites.

            Nas Memórias do Distrito Diamantino, do finado e saudoso dr. Joaquim Felício dos Santos, o único importante manancial de crônica do Tijuco, encontra-se a descrição minuciosa da descoberta das lavras e fundação do Tijuco.

            Portugueses, mamelucos e sertanistas de São Paulo, vindos não se sabe ao certo de onde, chegaram em uma tarde fatigados da mais penosa das viagens, por uma das regiões mais agrestes da Capitania, à confluência de dois córregos, sem que um juízo qualquer os impelisse a tomar esse ou aquele caminho, esses homens rudes, fatalistas como todos que levam essa vida arriscada de nômade, confiantes no acaso, desfraldaram a bandeira que tomou a direção da nascente de um dos córregos, posteriormente denominado Pururuca.

            Pouco acima da confluência lavando a terra descobriram oiro, e um povoado de colmado e choupanas surgiu rapidamente.

            Algum tempo mais tarde outra bandeira chegou à confluência dos mesmos córregos, e como Pururuca já estava ocupado, seguiu pelo outro que, diz dr. Felício dos Santos, foi enfaticamente denominado Rio Grande, por ser um pouco mais volumoso que aquele.

            As lavras exploradas por esses bandeirantes produziram oiro em tal abundância que, de todas as partes da Capitania, começaram a chegar levas e levas de exploradores e em pouco tempo aquele deserto apresentou o aspecto risonho de um arraial florescente, possuindo uma capela, e onde todos viviam numa abundância feliz.

            Estava fundado o Tijuco, e daí deveria sair o oiro e diamante para as munificências Salomônicas da Corte Portuguesa e do Vaticano de Roma; daí deveriam sair os quatrocentos e cinqüenta milhões de cruzados com que d. João V obteve o título pomposo de Majestade Fidelíssima.

            Em troca dessa oriental opulência, dessa riqueza que assombrou o mundo, a colônia reservava para o mísero descobridor, para o infeliz habitante dessa terra a tirania suprema e as opressões iníquas.

            Nos primeiros anos seqüentes à descoberta, os benefícios havidos pelo real erário não obedeciam a um processo fixo de arrecadação, variando entre a cobrança do quinto nas casas de fundição e a capitação, notando-se, entretanto, a tendência de onerar mais e mais o mineiro em proveito da coroa.

            Até o ano de 1729 as lavras do Tijuco foram consideradas como puramente auríferas; ninguém cogitava, sequer, no diamante, embora nas escavações das lavras se encontrassem em grande abundância certas pedras de uma cristalização especial, de brilho notável, que, recolhidas como objetos de curiosidade, serviam nos serões de família como tentos de jogo.

            É portanto impossível determinar-se o lugar em que foi encontrado o primeiro diamante, assim como nomear o descobridor.

            Quanto ao nome do que naquelas pedras consideradas inúteis conheceu a cristalização preciosíssima do carbono, oscila incerta a crônica, dizendo uns ter sido Bernardo da Fonseca Lobo, explorador de oiro, e que efetivamente reclamou do governo da Metrópole alvíssaras pelo auspicioso descobrimento, querendo outros tenha sido um frade da Congregação da Terra Santa, que havia estado em Golconda, e que chegando ao Tijuco reconheceu o diamante nos tentos de jogo e retirou-se depois de haver feito silenciosamente uma abundante colheita.

            O certo, porém, é que esse reconhecimento deveria marcar o início do sofrimento de um povo; a Corte Portuguesa, aurisedenta lançaria em breve os olhares ambiciosos e toda uma rede maquiavélica de perseguições envolveu o Tijuco para que aquela abundância fosse ter diretamente aos cofres portugueses.

            E efetivamente tombou como um raio sobre a população pacífica o bando iníquo do governo da Capitania, lançando interdição sobre todas as lavras.

            Vem a propósito contar a lenda dos diamantes que a tradição popular guarda, e que foi aproveitada por Joaquim Felício no seu romance Acaiaca.

            Quando os primeiros exploradores se estabeleceram no Tijuco, viviam nas grandes florestas que circundavam o descoberto, as tribos selvagens indômitas que jamais haviam sentido o peso opressor do braço português.

            É certo que de longe em longe o selvagem havia lobrigado o vulto de um aventureiro branco, carabina a tiracolo, olhar arguto e vivaz, seguindo por uma rota ignorada em busca de esmeraldas ou de uma dessas quimeras que povoaram o cérebro dos arrojados sertanistas.

            Como a vaga noção de indefinida ameaça, corria entre eles na brumosidade de lendas, a história de guerreiros brancos vindos de terras remotas, que venciam na selva o guerreiro feliz; mas até então, a vida dessas tribos corria na plena liberdade de seus vastos domínios entre os episódios da caça e da guerra, sem outras preocupações que as apoteoses da vitória e os festejos da paz.

            Foi então que os descobridores do Tijuco fixaram-se nas vertentes do Rio Grande, e o gentio da Ibitira sentiu o perigo próximo a conjurar.

            Nessa tribo dominadora havia a superstição fabulosa de que todo o seu poderio dimanava de um talismã venerado, uma grande Árvore Sagrada, a que a lenda atribuía uma antigüidade imemorial.

            Chamavam-na Acaiaca; era um cedro prodigioso, como outro não se encontrava naquelas regiões, que erguia a fronde verdejante à inacreditável altura por onde, nas noites tormentosas a nevrostenia dos ventos uivava dolorosamente.

            E as nuvens densas das estações hibernais tocadas pelo Norte rijo, dilaceravam-se nas grimpas elevadas da Acaiaca, deixando grandes fragmentos brancos como farrapos antigos de uma bandeira de Paz.

            As grandes tormentas de setembro blasfemavam à noite na impotência de vencê-la, e a Árvore Sagrada, ao despontar clarinante do Sol, mostrava-se úmida e verde num espanejamento matinal de força e de saúde.

            Enquanto Acaiaca vivesse, de pé, como um titã invencível, protegendo em sua sombra o Conselho dos Pajés e dos Chefes, guardando junto às raízes os corpos sem vida dos guerreiros finados, a tribo contaria as vitórias pelos combates e o seu nome soaria na taba inimiga como um brado de destruição e derrota.

            Enquanto a Acaiaca florisse ao sorriso consolador das primaveras cantantes, e em seus braços protetores a ave nidificasse, o emboaba não dominaria o solo em que tinha nascido, lutado e morrido toda uma raça de fortes, não os expulsaria dali, para que desprezados e errantes vagassem pelas terras estranhas sem família e sem taba, a mãe protegendo o filhinho e o filho conduzindo o pai cego como os guerreiros Tupis do I- Juca-Pirama.

            Mas a traição conduziu o emboava ao pé do gigante, na noite nupcial de Cajubi, enquanto a tribo se entregava aos prazeres da festa, e a embriaguez do Cauim perturbava todos os cérebros.

            Cururupeba, o chefe da tribo, que nessa noite entregava sua filha aos braços fortes de um guerreiro, sentado num velho tronco, mostrava a expressão sisuda de quem reflete e pensa.

            Deslocado no meio daquela alegria delirante, único que não havia molhado os lábios no embriagante licor, quedava-se absorvido em pensamentos obscuros, sentindo passar de quando em quando no espírito abismado as asas de luto de um presságio tremendo.

            Pesava sobre ele a sugestão de uma desgraça latente, que não apresentava ainda formas definidas e temerosas por isso mesmo que não podia ser conjurada, que não podia ser afastada.

            Das bandas em que se erguia a Acaiaca, vinha na asa da brisa um rumor surdo e vago, que seus ouvidos atiladíssimos de selvagem não sabiam determinar, trazendo alguma cousa de ameaçador que se diluía e espalhava na noite, envolvendo-o, oprimindo-o.

            Um gargalhar sinistro de ave noturna e agoureira vibrava no espaço, irônica e pressaga, ao mesmo tempo que, dos lados da Ibitira, um ruído abafado de desabamento chegava.

            Cururupeba ergueu-se, desempenou a estatura de atleta à baça luz cambiante de fogueiras a se extinguir, e o som clarinante da menobiapava[ii] vibrou estridente, amortecido de eco em eco, diluiu-se vago, assutilado nas montanhas distantes que uma bruma encobria.

            Era o sinal da guerra!

            E aquela multidão cambaleante e ébria precipitou-se em seguimento do chefe que partira em direção ao planalto, onde dormiam os valentes guerreiros da tribo, à sombra abrigadora da grande árvore sagrada.

            A Acaiaca já não era de pé e sua queda arrastaria fatalmente a dispersão e o aniquilamento da tribo; tombava com ela todo um passado glorioso de vitórias e esse poder ignoto que governa os orbes escrevera a sentença do gentio indomável.

            Os bravos e os fortes ergueram-se armados, lançando a maldição sobre os profanadores da ibicoara da taba, jurando a destruição do Tijuco. A superstição prendia os braços a alguns e tendo desaparecido com a queda da árvore simbólica a coesão molecular, dissensões se levantaram no seio da tribo antes unida e uma luta tremenda, sanguinosa e fratricida assombrou a grande noite muda, anuviada por nimbos pesados, pressagiando tormentas, por entre os quais assomava vagarosa a face angustiada de uma Lua sinistra.

            Um raio incendiou a Acaiaca e o velho pajé sábio que a vira florir 152 vezes, sepultou-se nas chamas, murmurando uma maldição temerosa:

            “Vamos, guerreiros! que das cinzas da Acaiaca surjam as desgraças dos peros.

            Segui-me: eu sou o instrumento de anhangá, eu sou anhangá, sou mais cruel do que ele, mais feroz, mais inexorável, mais sem piedade! ...

            É chegada a hora da vingança!

            Maldição sobre os peros!...”

            Arrastados pelas águas os carvões da grande árvore foram se depositar nos leitos dos rios, nas encostas dos montes, nos vales profundos; e no dia seguinte, quando os mineiros se dirigiam para as lavras, colheram, revolvendo a terra, os primeiros diamantes.

            A tribo lá ficara aniquilada e morta, junto à ibicoara sagrada dos guerreiros fortes.

            A maldição do pajé tombou cruelmente sobre o povo do Tijuco; interditas as lavras, proibida a única indústria existente, o desalento avassalou o ânimo forte daqueles sertanistas, que jamais se haviam vergado ante insuperáveis obstáculos da natureza selvagem, do gentio antropófago, das feras carniceiras, e que se curvavam humildes, resignados aos decretos da tirania maldita, sem um protesto, guardando tão somente o direito de súplica ao qual mostravam ouvidos inclementes os ambiciosos governos.

            Demarcado o Distrito Diamantino, nomeadas autoridades especiais, formou o Tijuco um Estado no Estado, sujeito a leis particulares, opressoras e iníquas, e os habitantes viviam sob a pressão dolorosa de penas rigorosíssimas, aplicadas por processos sumários donde era completamente excluída a defesa.

            Todo o empenho da Metrópole estava em descobrir um sistema engenhoso de encher de riqueza o real erário, deixando aos povos da colônia o estrito necessário para levarem uma vida humilde, sem bem-estar e sem luxo, conservando-lhes tão somente a força muscular necessária para que extraíssem das entranhas da terra os diamantes e oiro com os quais o rei devasso saldava do Vaticano seu débito colossal de pecados remotos.

            Patrulhas e dragões percorriam dia e noite os córregos e as lavras, evitando a mineração furtiva; e uma leve suspeita de contrabando era punida com o confisco dos bens e degredo para os rochedos da África.

            Dia a dia, o braço férreo da tirania lançava sobre o povo um decreto opressor. Foram despejadas todas as fazendas e casas situadas em terrenos minerais, e isso sem que se indenizassem os prejuízos, desrespeitando os direitos adquiridos e as eternas e supremas leis da humanidade e da justiça.

            Como acima dissemos, foi conservado um direito inútil aos povos do Tijuco — o direito de súplica.

            Em uma petição dirigida ao governo da Metrópole, peça redigida com talento, em cujas entrelinhas untuosas de humildade ressumbram ironismos dolorosos, lemos o seguinte memorável trecho.

            “... que a execução que na forma sobredita se deu às ordens de V. Majestade, não parece própria da reta e justa intenção real de V. Majestade nem de sua natural piedade, real clemência, e amor paternal de seus vassalos.”

            Que sorriso amarelo e travoroso pairou nos lábios do redator dessas linhas: Era o amor paternal do Rei, que atirava a plagas longínquas um pai, deixando no Brasil os filhos implumes, na miséria mais negra! Era a sua natural piedade que condenava, a trabalhos perpétuos, o suspeito sobre o qual só pesava uma denúncia inimiga, era finalmente uma real clemência que pesava sobre os habitantes do Tijuco, como um manto de chumbo.

            Poderia, se o quisesse, citar inúmeros fatos comprobatórios da tirania que subjugava a colônia, principalmente o Distrito Diamantino submetido à lei de exceção, mas basta dizer-vos que os arquivos de nossa terra estão atulhados de processos, cujo só exame, forneceria o libelo acusatório do despotismo português.

            E a tradição popular que corre de boca em boca, nos fala desse tempo como de uma era maldita em que o ar respirado trazia um perfume de lágrimas, e a água cristalina dos regatos tinha ressaibo de sangue.

            Em 1739 depois de ter estado no Tijuco o governador geral da Capitania, e de combinar com o dr. Rafael Pardinho o meio mais prático de exploração das jazidas de diamantes, ficou resolvido que sua extração fosse dada em hasta pública, a quem melhores vantagens oferecesse.

            Foi firmado o primeiro contrato com João Fernandes de Oliveira, que o renovou passados quatro anos.

            Podiam os arrematantes minerar com 600 escravos, mediante pagamento anual de 230$000, sendo-lhes expressamente proibido empregar maior número.

            Esse novo regímen veio agravar a situação dos tijuquenses, que já então tinham permissão de minerar em algumas lavras puramente auríferas, e uma nova fase de perseguição começou para eles.

            Aos contratadores era permitido, como aos arrematadores de impostos, o direito de cobrar executivamente de seus devedores, daí a penhora e o tronco para os que não podiam satisfazer seus compromissos.

            O contrato mantinha um corpo de pedestres, que fiscalizava as lavras, e se por acaso caía sobre algum indivíduo a suspeita de contrabando, eram-lhe os bens confiscados, metade para o real erário e outra metade para o contratador.

            Do mesmo privilégio, isto é, da partida dos bens confiscados, gozava qualquer particular que denunciava a mineração furtiva: era a traição premiada, a recompensa da infâmia, mas que importava isso se o oiro confiscado não perdia o seu valor.

            Manda, entretanto, a justiça dizer que, como que salvaguardando os princípios da moral, os bandos que determinavam o prêmio da delação, assim rezavam “...e confiscados os bens, uma parte pertencerá ao real erário, e outra ao vil denunciador.”

            E assim ficavam satisfeitas aquelas almas de moral elástica.

            A denúncia verbal do contratador dava lugar a um processo sumário secreto, que terminava invariavelmente pela condenação do acusado, o que vale dizer, que o contratador era um novo tirano para os tijuquenses.

            O primeiro arrematador, João Fernandes não deve ser confundido com o desembargador, seu homônimo, e filho de que nos ocuparemos adiante.

            Vamos agora tratar de um dos pontos mais interessantes da história do Tijuco, em volta do qual a lenda aparece em glorificações de martírios, em relevos de valor, de generosidade, de amplos e vastos sentimentos bons.

            Referimo-nos ao garimpeiro, àquele que exercia a mineração furtiva, indo de encontro às mais severas ordens da Colônia, afetando diretamente seus interesses.

            O garimpeiro não é a nosso ver o indivíduo ousado que afronta as leis estabelecidas, fraudando os cofres do Estado e a sociedade em geral.

            Ele é o primeiro assomo de vitalidade de um povo adormentado que se revolta contra a iniqüidade do tributo lançado não consoante às necessidades públicas mas de acordo com as ambições e opulências de uma Corte devassa.

            Foi o brado da primeira reação contra a tirania, foi o primeiro que se sentindo oprimido teve a coragem inaudita de reagir e lutar.

            Estudando o caráter e a índole do garimpeiro convencemo-nos de que ele seria o herói de uma luta libertadora, se as condições especiais de meio e de época permitissem a germinação dessa idéia.

            É necessário dizer que o garimpeiro tinha como único crime o desprezo das determinações proibitivas do governo; na sua vida nômade nem sempre rendosa muitas vezes a miséria e a fome poderiam guiá-lo aos atentados infames; ele jamais se confundiu com o salteador de estradas, com o invasor de fazendas e povoações inermes.

            O viajante não sentia o mais leve temor nos lugares mais ermos, carregados de riqueza, encontrava um bando de mineradores furtivos.

            Eles não queriam o oiro que representava um esforço e um trabalho: reclamavam para si o que a natureza guardava para todos.

            Isolados e sempre perseguidos nas grimpas alcantiladas das serras do Tijuco, levando uma existência quase selvagem, o caráter desses homens se acrisolou na virtude, na lealdade, numa coragem indômita de leões, qualidades que formam o traço característico da vida do garimpeiro.

            Nas tradições populares de Diamntina destacam-se os vultos simpáticos de João da Costa, José Basílio e Isidoro, tendo o primeiro desses sido considerado injustamente por Júlio Verne em o seu romance A jangada como um vulgar criminoso salteador e ladrão.

            Vamos citar a lenda de José Basílio, uma das mais cheias de episódios.

            José Basílio, natural da vizinha cidade de Santa Luzia, garimpava nas lavras do Tijuco, quando foi preso durante a intendência de Luiz Beltrão.

            Conseguiu evadir-se subornando o carcereiro com meia oitava de diamantes. Preso pela segunda vez em 1784, foi condenado a trabalhar dez anos no serviço da extração no Jequitinhonha, ligado por correntes a um outro garimpeiro sentenciado — João Bago.

            Um dia mandaram do Tijuco um pequeno embrulho contendo algum oiro, umas limas e uma faca.

            No grande desalento que minava a alma forte do garimpeiro, sorriu-lhe um doce Luar de Esperança, e numa visão saudosa ele viu aparecer perto a vida aventureira que dantes levara, sob o pálio suavizante das estrelas e dormiu embalado por Sonhos brumosos de Liberdade e de amor.

            O galé que se julgava abandonado tinha palpitando por ele um coração piedoso; é que a alma nacional fatigada de sofrer, tinha infinitos afetos para o garimpeiro rebelde. Uma noite quando a tropa dormia e o sono cerrava as pálpebras vigilantes das sentinelas, os dois aventureiros, num anseio de liberdade, limavam pacientemente as correntes dos pés. Livres os passos, os sentenciados abandonaram a choupana, como se depois de lhes ter farolado no espírito uma idéia de fuga, não pudessem mais respirar a atmosfera pesada que cerca os prisioneiros.

            A buzina soou, anunciando o alarma; os fugitivos precipitaram-se para as bandas do Jequitinhonha, incendiando na passagem, os colmados para que a confusão no acampamento lhes permitisse a fuga. Entre os clarões fumarentos daquele incêndio lembravam fantasmas de criminosos, unidos na Xifopagia da Pena.

            Acercaram-se do Jequitinhonha e o rio, naquela hora erma da noite, rolava as águas negras num soluço eterno de condenado.

            Os dragões, no encalço dos fugitivos, aproximavam-se sempre: era necessário agir. No espírito dos garimpeiros desenvolveram-se perspectivas sombrias, sucedendo-se rápidas: de um lado, novo encarceramento, novas correntes prendendo-lhes os passos, depois uma longa viagem, o embalo das águas, por longos dias silentes, e no fundo do quadro os areais da África, os rochedos estéreis, o degredo perpétuo; do outro, as águas do rio turbilhonando na cheia, a Agonia cruel dos afogados, a Morte, a Morte sempre...

            E os dois corpos ligados precipitaram-se na torrente ...

            O Jequitinhonha corre nesse ponto entre negros rochedos escarpados, rápido e espumaroso; os dois galés unidos ainda pelo pescoço nadavam rio abaixo num esforço tremendo; aproximando-se das margens os braços hirtos dos nadadores procuravam em vão apoio nos rochedos nus; os dedos escorregavam no limo úmido, a corrente pesada fazia-os mergulhar de quando em quando para surgirem além mais fatigados ainda.

            A luta não se podia prolongar e em breve aqueles corpos iriam dormir nas areias do Jequitinhonha, entre os diamantes e o oiro.

            Da margem, uma árvore estendia os braços sobre as águas, Basílio agarrou-se a ela, num supremo esforço: era a salvação, a liberdade, o garimpo, a riqueza...

            No silêncio trágico da noite, só interrompido pelo salmodiar da torrente, soaram sinistras duas detonações.

            Basílio sentiu na argola que lhe cingia o pescoço uma pancada violenta e um grande peso, partindo o galho da árvore, precipitou-o nas águas.

            Seu companheiro tivera o crânio varado por uma bala e agora ele se via ligado a um cadáver que o arrastava, pesado como chumbo, para as profundezas do rio.

            A luta recomeçou; Basílio levado para as camadas inferiores, agarrou-se a um rochedo que se elevava até a superfície e, num esforço sobre-humano, arrastando-se, e ao companheiro morto, voltou à tona e agarrou-se à anfractuosidade duma pedra.

            Daí viu os dragões que se retiravam sacudindo grandes fachos acesos, julgando-os mortos e sepultados nas águas marulhosas do opulento Jequitinhonha.

            João Bago tombou realmente nessa tentativa de fuga, mas Basílio viveu ainda porque para mais tarde estava marcada sua hora.

            No dia seguinte chegou à serra da Barra do Rio Manso, onde morava um parente ferreiro que fez do ferro das correntes dois almocafres e uma alavanca com que José Basílio continuou o garimpo.

            Foi ainda por seis anos o terror das tropas da extração, e em 1791, trabalhando no Brumadinho com outros companheiros, após uma resistência heróica, foi preso, ferido gravemente.

            Durante o interrogatório não denunciou nenhum de seus cúmplices.

            Justificando-se plenamente de outros crimes que lhe eram imputados, só foi condenado como extraviador de diamantes, a dez anos de degredo para Angola.

            E nada mais reza a crônica sobre esse célebre garimpeiro, cuja lenda foi reduzida a belíssima forma pelo talento de Afonso Arinos.

            Porém no ciclo glorioso das lendas do Tijuco sobressai, em primeiro plano, a figura simpática de Isidoro, — o mártir que ainda hoje vive na memória do povo diamantinense.

            Corria a Intendência do Câmara, único intendente brasileiro e o primeiro que chamou sobre sua memória a amizade do povo e que a par de atos de generosidade fidalga, e grandeza de ânimo tem maculando-lhe a vida, o episódio doloroso de Isidoro, o Garimpeiro.

            Era esse um pardo, escravo de frei Rangel, que vivia da mineração. Processado como contrabandista, foi confiscado a seu senhor e condenado ao trabalho, no serviço da extração, como galé.

            Não podendo suportar a pena Isidoro, depois de várias tentativas, conseguiu evadir-se, reunindo-se a 50 garimpeiros que formaram o bando mais terrível de mineradores clandestinos. Isidoro, como chefe, mantinha no grupo a mais severa disciplina, e se por acaso, algum dos companheiros infringia as normas estabelecidas, era entregue, quando escravo, a seu senhor, para que sofresse a punição merecida.

            “Respeitavam, diz o dr. Felício, a propriedade dos brancos que lhes haviam roubado o mais precioso dos bens — a Liberdade.”

            Nunca sobre Isidoro, pesou uma denúncia infamante; estimado por todos, hábil mineiro, recolhia abundantes resultados do seu trabalho, e entretinha relações comerciais com os principais habitantes do Tijuco.

            Para citar um fato característico, transcreveremos das Memórias do Distrito Diamantino o seguinte trecho:

            Tendo fala em uma certa casa da Rua da Romana, Isidoro apareceu disfarçado à noite, e pediu para conversar, em particular, com o dono da casa.

            Em um gabinete secreto teve lugar o diálogo que se segue:

           

            — O senhor me conhece? pergunta o nosso herói.

            — Conheço; é Isidoro, o Garimpeiro.

            — É verdade; e nem consta que eu tenha feito mal a pessoa alguma.

            — É certo.

            — O senhor tem uma escrava?

            — Tenho algumas.

            — Uma fugida?

            — Sim.

            — Chamada Maria?

            — Sim.

            — Sabe que não fui eu quem a aliciou a que fugisse de sua casa?

            — Sei que para fugir ela não precisa de quem a alicie.

            — Quanto o senhor quer pela sua liberdade?

            — Por ter o defeito de fugitiva, só vale 200 oitavas.

            — Mas ela está com filho.

            — Então quero 220.

            — Mas o filho é meu.

            — Então só quero 200.

            — Eu trouxe 600 oitavas para a liberdade da mãe e do filho; o dinheiro aplicado para a liberdade é sagrado. Peço-lhe que distribua as 400 restantes para os pobres.

            Isidoro recebeu a carta de alforria e saiu.

            No dia seguinte os pobres do Tijuco receberam 400 oitavas de esmola e só posteriormente se soube a sua origem.           

            Esse diálogo vem demonstrar o que acima dissemos.

            O caráter desse homem, que havia sido escravo, transparece puro como os diamantes através dessas frases sinceras.

            Não era nem podia ser um criminoso esse que manifestava os mais elevados sentimentos, uma Moral sã, princípios retos de Justiça.

            Isidoro foi muito perseguido durante a intendência de João Ignácio, que precedeu à do Câmara, sua cabeça foi posta a prêmio; entretanto ele vivia quase publicamente nas povoações e ninguém o prendia.

            Câmara, o mais acérrimo perseguidor dos garimpeiros declarou-lhe uma guerra encarniçada, disseminou patrulhas por toda a parte, bateu em diferentes lugares, empregou meios de sedução, ameaça e violência com as pessoas que supunha protegê-lo.

            Burlando todos esses planos, Isidoro escapava às perseguições de Câmara, que, dotado de excessivo amor-próprio, fez ponto de honra da prisão do garimpeiro.

            Depois de muitos anos garimpar, nas proximidades do Tijuco, sempre perseguido, ora vencedor generoso, ora vencido e foragido nos desertos, até que organizasse novamente seu bando e pudesse continuar o garimpo, entrou um dia, em 1809, preso no Tijuco.

            O povo que o conhecia em as grandes manifestações de sua Alma de Justo, acompanhou-o pelas ruas e um murmúrio unânime de piedade fugia daqueles peitos.

            Ferido, amarrado sobre o cavalo, as vestes rotas, manchadas de sangue, Isidoro simbolizava em sua dolorosa Via Crucis, o sofrimento longo e inconsolável daquele povo oprimido.

            Os olhos grandes magoados vinham cheios de uma resignação celeste; nem uma contração da face, indicando a impotência do ódio — ele o forte, o ousado lutador que tantas vezes vencera os dragões da Extração, que jamais sentira falsear-lhe a energia na iminência trágica do perigo — mostra então a coragem excelsa do martírio, essa que só de longe em longe aparece na História.

            E a multidão de homens magoados e mulheres lacrimejantes segue o préstito, dizendo: “Ei-lo, o inocente, ei-lo, o Justo”.

            No interrogatório, demorado, e rigoroso a que o submeteu Câmara, não denunciou um só de seus cúmplices, mostrando a mesma obstinação de Tiradentes em chamar para si todas as responsabilidades e Penas.

            Perguntando-se-lhe se conhecia seu crime, respondeu que não era criminoso “os diamantes são de Deus e não julgo delito extraí-los”.

            Em vista da obstinação calma e serena, negando-se sempre a denunciar culpados, foi, a mandado de Câmara, submetido à tortura; preso a uma escada, de cabeça para baixo, os membros sangrando ainda pelas feridas do combate, os movimentos tolhidos e pedestres robustos dilaceravam-lhe as carnes com os látegos cortantes do bacalhau.

            O povo compungido assistia o Martírio, mas dos lábios de Isidoro nem uma blasfêmia fugia, nem uma palavra de desesperação e de Ódio.

            De um segundo açoitamento foi transportado moribundo para o cárcere e então mostrou desejos de conversar com Câmara, tinha um pedido a fazer-lhe e uma revelação importante.

            O intendente era um espírito adiantado, dotado de altas qualidades de Coração e Alma, mas em quem um gênio arrebatado e impulsivo o levava a lamentáveis excessos, dos quais se penitenciava depois. Foi assim que, quando o garimpeiro agonizava, vítima dos açoitamentos iníquos, dirigiu-se à prisão e disse ao moribundo: “Isidoro, peço-te perdão pelo muito que te fiz sofrer”. O infeliz tentou erguer-se, murmurou sons inarticulados e tombou; — terminara para ele a dolorosa peregrinação na vida transitória.

            A memória desse Mártir vive e viverá sempre na recordação do povo que o venera.

            Ele é um canonizado da consciência pública, e seu nome invocado nos momentos de desespero, como se sua Alma sofredora na terra, seja agora nos Céus a proteção e o amparo dos que choram! ...

            Dizem que na Procissão de Passos, quando o andor do Crucificado passa pelas ruínas da cadeia velha, torna-se pesado, como se o garimpeiro, invisível aos olhares profanos, seguisse no andor acorrentado e sangrento ao lado de Jesus, Grande Mártir lendário.

            Vamos descrever um episódio importante sucedido no Tijuco, durante o governo do marquês do Pombal.

            Felisberto Caldeira Brant, descendente direto de D. João III, duque de Brabant, (1355), bisavô do marquês de Barbacena, era um contratador popularíssimo pela condescendência com que olhou para o contrabando e mineração furtiva, se bem que de sua repressão pudessem advir vantagens e lucros para o contrato.

            O dr. Rodrigo Otávio, no seu recente romance histórico — Felisberto Caldeira Brant — baseado em um trecho de uma memória da Capitania, trabalho escrito em época pouco posterior à vida daquele contratador, diz que seria ele considerado como um criminoso vulgar, se o dr. Joaquim Felício não lhe defendesse a memória.

            Pedimos ao ilustre literato vênia para dizer que o contratador Felisberto Caldeira nunca foi considerado um criminoso, e sim uma vítima simpática da tirania portuguesa.

            Possuidor de uma enorme fortuna adquirida nos sertões de Goiás e Paracatu, Felisberto Caldeira assinou no Tijuco o terceiro contrato, no qual eram associados seus três irmãos.

            Foi esse o período áureo do Distrito demarcado; prosperavam indústrias e todos os ramos de atividade.

            A principesca opulência dos Caldeiras, a popularidade que os cercava, começaram a preocupar os governos da Metrópole que receavam as grandes potências da Colônia, e aproveitando denúncias, infundadas talvez, principiaram a mover-lhes perseguições, de que afinal foram vítimas.

            Um incidente havido na matriz do arraial durante as festas da Semana Santa, provocado pelo modo desrespeitoso com que o ouvidor da Vila do Príncipe tratou uma gentil mocinha, prima de Felisberto, incidente este que deu lugar à iminência de um grave conflito entre dragões, populares e pedestres, evitado entretanto pelo padre oficiante, que meteu-se entre o povo, pedindo a paz em nome de Jesus, fez com que o governador da Capitania, tendo recebido ordem da Metrópole, se dirigisse em pessoa para o Tijuco.

            Felisberto preparou para sua chegada uma recepção majestosa, e tendo dela notícia, saiu-lhe ao encontro acompanhado de seu irmão e de todas as pessoas notáveis do arraial.

            Chegados ao ribeirão do Inferno, avistaram os tijuquenses a luzida comitiva do general.

            Conta-se que nessa ocasião o cavalo fogoso de Felisberto, dando um passo em falso, atirou fora da sela o hábil cavaleiro, que se levantou pálido, dizendo:

            “Meus amigos, é a primeira vez que isto me acontece, pressagio alguma desgraça que me está para suceder”.

            De fato, daí a pouco, encontraram o general, seguido de numeroso séquito.

            Cumprimentando-o amavelmente, Felisberto, deu-lhe aquele voz de prisão, cercando-o os dragões de espadas desembainhadas.

            Dali mesmo seguiu para a Vila Rica e depois para a Metrópole, sem que lhe fosse permitido despedir-se da família.

            A notícia espalhando-se no Tijuco, causou profunda impressão, porque dentro do arraial impossível seria sua prisão.

            O fisco seqüestrou à família todos os bens de Felisberto; e sua mulher e filhos viram-se forçados a procurar hospitalidade em casas amigas.

            Conta-se que, quando em casa de Felisberto faziam para o confisco o arrolamento de seus bens, o governador voltando-se para as senhoras que assistiram ao ato, disse-lhes que podiam adornar-se com suas jóias prediletas que seriam respeitadas.

            Aquelas damas orgulhosas e nobres, habituadas às riquezas, não podiam aceitar a generosidade irrisória do fisco.

            Por um gesto simultâneo, movidas pelo mesmo sentimento, despojaram-se das próprias jóias que as adornavam então, para que nem mesmo aquelas insignificâncias perdesse a coroa.

            Conduzido para a prisão do Limoeiro, em Lisboa, Felisberto assistiu ao terremoto, e narra a lenda que, quando os habitantes, presas da desolação, fugiam, nas ruínas da cadeia desmoronada, a figura pálida de Felisberto erguia-se bradando: “Ladrões ... restituí-me o dinheiro que me roubastes!”

            Para terminar a história do infeliz contratador, transcrevemos o seguinte trecho de Rodrigo Otávio: “... e, só depois que um sinistro silêncio sucedeu à confusão e tumulto das primeiras horas, o velho presidiário desceu lentamente do alto das ruínas, de onde contemplara o deplorável panorama da destruição, e se perdeu no labirinto solitário das ruas desmoronadas.

            Nesse andar chegou o ancião à casa em que, foi informado, estava o marquês de Pombal, cercado de outros ministros do rei, tomando as providências imediatas que tamanha desgraça exigia.

            Levado à presença do poderoso ministro, disse o velho: — “Senhor! Eu sou Felisberto Caldeira Brant, o contratador dos diamantes do Tijuco, preso nos segredos do Limoeiro, e à espera, desde 1753, da liquidação de minhas contas.

            Como a prisão em que me achava desabou e restituiu-me à luz do dia, que não via desde tanto tempo, venho pedir à Vossa Excelência que designe outra prisão, a que me deva recolher e aguardar a liquidação de meu débito e o levantamento do seqüestro de meus bens, o que já tantas vezes tenho requerido e de novo requeiro.”

            Surpreso com o estranho proceder do mineiro, quando todos os outros se haviam prevalecido do sucesso para reconquistar a liberdade comprometida por algum crime ou malversação, Sebastião Joseph de Carvalho replicou: “— Não precisa que se lhe aponte prisão quem tão nobremente procede.

            — Recolhei-vos aonde vos aprouver e quando houver passado esse primeiro tempo de extraordinárias preocupações, que esta desgraça de hoje veio trazer para o serviço d’El-Rei, procurai-nos de novo que vamos prover acerca do vosso justo requerimento.”

            Falando no terremoto de Lisboa, lembramo-nos de uma lenda que corre em Diamantina, e que narraremos em largos traços.

            Quando em Lisboa, como se uma maldição tremenda pesasse sobre a cidade opressora, os palácios desmoronavam abalados nos fundos alicerces, e o povo assombrado errava pelas ruas, invadindo as Igrejas, como se no recesso sagrado as epilepsias geológicas não atingissem o homem, uma senhora, cujo solar fidalgo se havia abatido, penetrou em uma Igreja deserta e em orações contritas pedia aos céus que a salvassem daquela tremenda catástrofe.

            O templo estremeceu como se fosse desabar e tendo-se fendido a parede de pedra, um raio de luz coada através de nuvens densas e plúmbeas, infiltrou-se pela fenda do muro, indo aureolar de uma claridade estranha a cabeça cismadora de uma imagem da Virgem.

            O terreno continuava a mover-se, as torres inclinavam-se, de pé ainda por um milagroso equilíbrio, e de longe, como um rumor de tormentas, os ruídos do desmoronamento chegavam; e gritos de mágoa subiam para os céus inclementes, como últimas preces dolorosas e aflitas.

            A mulher que rezava precipitou-se para a senhora que parecia fitá-la compassiva, beijando-lhe os pés; e num voto de salvação prometeu dedicar sua vida e fortuna na criação de um Asilo de órfãs e recolhimento onde quer que o destino a levasse.

            Acalmado o terremoto, Thereza de Jesus Perpétua Corte Real retirou-se de Lisboa para o Brasil, fixou-se no Tijuco, onde em cumprimento da promessa, fundou o recolhimento de Nossa Senhora da Luz, mais tarde transformado em estabelecimento de educação de meninas.

            Thereza de Jesus, espírito místico, chegando a avançada idade, atacada de amolecimento cerebral senil, tornou-se uma contemplativa visitada por visões beatíficas.

            Dizem que uma tarde quando soava o toque emocionante do Ângelus Sonoro, sobre as serras distantes morriam os derradeiros vasquejamentos fulvos de um sol agonizante, e pelas estradas desertas mugiam saudosamente os velhos bois sonolentos, reunidas na Capela do Convento começavam as Orações do Ritual as freiras e as noviças, quando uma dessas sentindo-se doente pediu à madre diretora que lhe permitisse orar em sua cela.

            Terminada a Prece na hora silenciosa do ressurgimento de Vésper, quando o imponderável das cousas parece ser a nota dominante, Thereza de Jesus, tendo ainda a embalar-lhe as últimas notas dos Salmos soluçantes, dirigiu-se para a cela da noviça doente.

            E uma visão estranha lhe deslumbra o olhar fatigado.

            Era talvez um santo guerreiro, desses que haviam feito as campanhas piedosas da Idade Média, e sucumbido beijando a terra sagrada que guarda o sepulcro de Cristo.

            E enquanto Thereza de joelhos humilhava-se ante a aparição celeste, essa se desvanecia na sombra densa dos longos corredores claustrais.

            Há entretanto quem afirme que dessa vez não foi a religiosa vítima de uma mera visão subjetiva de seu espírito doente.

            Mais tarde, quando se procedia a transformação do antigo Recolhimento na atual Igreja da Luz (conserto lamentável que perturbou o velho estilo imponente do edifício) ficou o trabalho em meio, as paredes abertas aos vendavais e chuvas.

            Um operário, de nome João, que nela trabalhava, contou que, indo fazer uma oração, ouviu os lábios de pedra de São Francisco murmurarem suplicantes: “João ... ao menos barro!...” E então o povo concorreu com esmolas para que as paredes se levantassem, não somente de barro, como pedia o modesto Santo, mas de cal e areia.

            Um dos tipos mais característicos do Tijuco colonial é o célebre nababo desembargador João Fernandes de Oliveira, de cuja vida acidentada e cheia de episódios rapidamente nos ocuparemos.

            Do modo e da facilidade com que adquiriu a sua colossal fortuna que parecia, como se de longa data já lhe fosse destinada, entrava-lhe pelas portas adentro como que dirigida por um poder oculto, um simples fato, que passamos a narrar, nos dará uma idéia precisa.

            Encetando a exploração de uma das suas jazidas, quando apenas começava o desmonte, removendo a vegetação rasteira que cobria a superfície da terra, os diamantes estrelavam de tal maneira que o ambicioso desembargador, aterrado, lançou-se de joelhos exclamando: “— Senhor, se tanta riqueza tem de ser a causa da minha perdição, fazei que todos esses diamantes se transformem em carvões.”

            De todos contratadores foi o que maiores benefícios retirou, acumulando a maior fortuna do Tijuco.

            Orgulhoso, recebendo a vassalagem que prestavam à sua fortuna, o desembargador era autoritário, antipático ao povo em geral, e só se curvava humilde ante as caprichosas vontades de sua amante, a célebre Xica da Silva, mulher que não tinha atrativos que justificassem tal paixão.

            Na encosta da Serra, lugar hoje denominado Palha, erguia-se o Castelo do Contratador, vasto edifício de arquitetura medieval, posteriormente demolido, ato de vandalismo que, diz o dr. Felício, fez desaparecer o edifício mais importante da época feudal do Tijuco.

            Havia nesse solar fidalgo uma vasta Capela riquissimamente adornada e também um teatro onde se representavam peças ao sabor da época, nos dias de festividade.

            O parque era de um trabalho artístico digno de ser admirado, povoado de flores e árvores exóticas, cheio de córregos de águas cristalinas correndo sobre conchas marinhas, grutas, cascatas volumosas que espalhavam na penumbra do bosque uma eterna[iii] música sonorosa.

            Um dia Xica da Silva, que nascera no Tijuco, e ouvira falar no mar e nos navios como cousas fabulosas, desejou, por um capricho de mulher amada, possuir um navio, não sobre as águas do oceano, mas sob o céu do Tijuco.

            O desembargador, cuja fortuna colossal não encontrava impossíveis, mandou cavar um vastíssimo tanque em terreno próximo à sua morada, trazendo para o Tijuco armadores que construíram um pequeno navio, armado em brigue, no qual Xica da Silva passeava às tardes no grande lago artificial.

            João Fernandes edificou a Igreja do Carmo, templo suntuoso que ainda hoje existe mostrando sua decadência gloriosa.

            Mas apesar disso o capricho de Xica da Silva, que lhe ditara a realização dessa obra, não pôde ser satisfeito: a Irmandade do Carmo não permitia em seu seio indivíduos que não fossem de pura raça caucasiana e nem todo o poder do contratador conseguiu vencer esse preconceito secular, tolo e ridículo, digamos de passagem.

            Esse célebre contratador aproveitou-se para as suas explorações da tibieza de ânimo do intendente Francisco José Pinto de Mendonça, o qual por ser muito friorento e andar freqüentemente aquecendo-se ao sol, sobre umas pedras, vestido de um largo mandrião, recebeu do povo o apelido de Mocó. Refere a crônica que, um dia, dizendo-lhe alguém que o povo lhe pusera tal alcunha, respondeu com o sotaque português: “Mucó ou não mucó sou eu quem os guberna”. Por esse tempo começava no Tijuco o fermento revolucionário, alimentado pelas idéias francesas e pela notícia das guerras da América Inglesa.

            O espírito revolucionário encontrou terreno favorável ali, aplicando-se-lhe o célebre dístico da Companhia das Índias:

            Florebo quocumque ferar.”

            Conhecida essa agitação, Pombal manda ao Tijuco, para sindicar dos fatos, o governador, conde de Valadares, que tinha também a incumbência de ordenar ao desembargador um passeio a Lisboa.

            Chegado ao Tijuco o governador João Fernandes, desconfiando das suas intenções, recebeu-o principescamente, hospedando-o em seu palácio com magnificência régia.

            Todos os dias à sobremesa dos lautos banquetes, o criado, trajando riquíssima libré, colocava ao lado do governador uma riquíssima salva de prata cheia de belíssimas pepitas de oiro.

            O governador, em vista da cortesia e gentileza, não se animava a transmitir a ordem da Metrópole, e necessitando fazê-lo recorreu a um estratagema que o desculpasse perante o contratador.

            Pombal cortava, assim, as asas a mais esse condor do Tijuco.

            O desembargador morreu em Lisboa em 1799, depois de ter estabelecido o célebre morgado do Grijó, e construído, por ordem do marquês, duas ruas de Lisboa destruídas pelo terremoto.

            Alguns de seus descendentes vivem ainda cretinos e degenerados, arrastando sua miséria pelos hospitais do Norte, quando poderiam viver na opulência se lhes restituísse o governo português a herança a que têm incontestável direito.

            Pouco antes de surgirem as idéias de Liberdade em Vila Rica já no Tijuco se reuniam pessoas importantes e esclarecidas que sonhavam com a independência e preparavam elementos para a revolução.

            Entre essas se destacam os nomes de José Vieira Couto e o padre Rolim. Nesse tempo regia aqueles povos o célebre Código Draconiano, chamado Livro da Capa Verde, que continha o regimento da demarcação diamantina.

            O dr. José Vieira Couto foi enviado à Metrópole como emissário das queixas dos tijuquenses, sendo preso em Lisboa.

            O cadete Vieira Couto morreu no Tijuco, vitimado por uma enfermidade apanhada na cadeia de Vila Rica.

            Teve um enterro pomposo.

            O padre Rolim é muito conhecido pela parte saliente que tomou na Inconfidência Mineira.

            Fracassou assim o plano revolucionário, urdido no Tijuco, pouco antes da gloriosa epopéia de Tiradentes. Quando Junot entrou em Lisboa, abriu as prisões e em uma delas encontrou o dr. José Vieira Couto, a quem disse:

            “Senhor, já o conhecia, sei que o seu crime é ser maçom, também maçom é o imperador meu amo.”

            Consta que Couto morreu assassinado em Portugal.

            Deixando de parte a repercussão que teve no Tijuco a revolução do Porto, e a manifestação do sentimento bairrista dos tijuquenses com a expulsão do intendente João Ignácio, passemos à figura simpática de Manoel Ferreira da Câmara Bitencourt e Sá, 12o dos intendentes, e o primeiro brasileiro que ocupou tal cargo.

            Espírito culto, tendo percorrido as principais cidades da Europa, Câmara foi um intendente humano e bondoso, embora inexorável no cumprimento do seu dever e de gênio, por vezes, autoritário e despótico.

            Intitulava-se pai do povo.

            Contam-se, a seu respeito, as seguintes anedotas, a segunda das quais vem referida nas Memórias do Distrito Diamantino, obra que nos tem sido o mais importante subsídio para confecção desta palestra e que deixarão patentes essas duas feições do seu caráter.

            Um dia o intendente teve notícia de que um indivíduo guardava em sua casa, diamantes extraídos clandestinamente.

            Mandou efetuar incontinênti rigorosa busca na casa do suspeito. Quando, porém, o escrivão partia para cumprir suas ordens, disse-lhe o intendente ao ouvido: “Lembrai-vos de que o denunciado é, como vós, pai de numerosa família”. É inútil dizer qual o resultado da diligência.

            Câmara indeferiu o requerimento de um mineiro, que voltou à carga alegando disposições do Livro da Capa Verde e obteve o seguinte despacho: “Aponte-me leis que eu lhe apontarei léguas.”

            Introduziu e aclimou no Tijuco animais e plantas européias e criou um horto botânico, que foi elogiado pelo grande naturalista Saint-Hilaire, quando por lá passou.

            Foi também o primeiro a fundir o ferro na Capitania de Minas, montando a fábrica do Morro do Gaspar Soares.

            Retirando-se do Tijuco, caso único, aquele intendente deixou saudades e dedicações no povo que governava.

            Prestou ainda em outra esfera de ação relevantíssimos serviços.

            Fundou na Bahia importante Instituto Agronômico.

            Deputado à Constituinte em 1823 e posteriormente senador do Império, morreu nesse posto aos 13 de dezembro de 1835.

            Sobre a vida desse brasileiro notável pesa entretanto um crime, o bárbaro martírio de Isidoro, o Garimpeiro, motivado, é verdade, pelo grande interesse que tinha em dar cumprimento às ordens recebidas e em conhecer os contrabandistas pela denúncia de Isidoro, mas isso não o justifica, porque como disse Santeuil: “Quando vai a penalidade além do delito e sai a justiça fora das raias a que a levam as necessidades públicas e as normas morais, não há defesa possível nem atenuações ou desculpas”.

            Tratemos agora da fundação da Imprensa no Tijuco, elevado a paróquia, em 1817.

            É um acontecimento notável porque todo o material tipográfico — prelo, tipos, etc., foi produzido no Tijuco por dois jovens que jamais haviam conhecido um prelo e que, diz o dr. Felício, “da Imprensa só sabiam que ela fulmina os déspotas.”

            Cumpre acrescentar que o Tijuco foi o terceiro lugar de Minas em que apareceu o portentoso invento de Gutenberg.

            O primeiro periódico que se publicou ali foi o Eco do Serro, em 1828.

            Seguiram-se posteriormente muitos outros periódicos, sendo a Diamantina, depois da gloriosa Velha Capital, a cidade de Minas que mais jornais tem dado à luz.

            Pela lei de 13 de outubro foi o Tijuco elevado à vila, com o nome de Vila Diamantina; à categoria de cidade foi erguida, sete anos depois, pela lei de 6 de março de 1838.

            Daí por diante começa já a história da Diamantina contemporânea, que não entra na esfera da nossa palestra.

            Eis aí, meus senhores, em um ligeiro esboço e sem o colorido forte e sugestivo que o assunto pedia, a narração das principais lendas e tradições que possui o Tijuco.

            Creio ter-vos dado uma noção, ainda que incompleta, do sentimento e caráter do povo diamantinense, assim como provado que aquela terra tem sido o abrigo de todas as idéias liberais, com uma peregrinação desde o início do Tijuco até a Aurora dos tempos modernos.

            Parodiando um escritor francês, direi:

            Se empilhásseis todas as lágrimas vertidas pelo povo diamantinense em prol da Liberdade, elas se cristalizariam em monumentos superiores, mais altos que as pirâmides do Egito!

            O grande edifício da Liberdade de uma Nação repousa fatalmente sobre a opressão e a tirania exercidas contra o povo em tempos mais ou menos afastados.

            É por isso, senhores, que os diamantinenses guardam sempre as avançadas de todos os empreendimentos liberais, onde os podereis divisar nos mais arriscados postos do combate.

            Outro fato característico, apanágio dos povos oprimidos, é essa união que se nota entre seus filhos, esse carinho pela Cidade Natal, tão bem sentido nos versos de Aureliano Lessa:

 

            Vês lá na encosta do monte,

            Mil casas em grupozinhos,

            Alvas, como cordeirinhos

            Que se lavaram na fonte ?!...

            Não vês deitado defronte

            Qual dragão petrificado

            Aquele serro curvado

            Que mura a Cidadezinha,

            Pois essa cidade é minha

            É meu berço idolatrado!...

 

 

 

            Ali meus olhos se abriram

            À Luz matinal da vida,

            Lá primeiro à Mãe querida

            Meus lábios de Amor sorriram ...

            Lá seu nome proferiram

            Antes do nome de Deus !...

            Lá tentei os passos meus

            Da vida na estrada rude

            Lá aprendi a Virtude

            Minha Mãe, dos lábios teus.

 

            Olha como ela se inclina

            Pela esmeralda do monte

            Molhando os pés numa fonte

            De água fresca e cristalina.

            Olha como ela domina

            Esses serros alcantis

            Com seus ares senhoris

            Com seu cofre de Diamantes

            No meio de seus Amantes

            Distribuindo rubis.

           

            Salve Atenas tão risonha

            Da verde e saudosa Minas

            Rainha dessas colinas

            Que banha o Jequitinhonha

            Teu vassalo; ele nem sonha

            Quebrar-te o jugo real...

            E vem, a um leve sinal,

            Com seus Rubis, com seu Oiro

            Derramar no teu tesoiro

            O seu tributo anual.

 

            Feliz quem no seio teu

            O sopro da Providência

            Faz brotar a Inteligência,

            Pérola fina do Céu,

            Como da Noite no véu

            Faz mil pérolas fulgir

            Tu tens ó rival de Ofir,

            Outras jóias, outros brilhos

            Teu tesoiro são teus filhos,

            Tua glória é seu porvir.

 

 

 

 

 

 

 

            Seu Porvir, sim, que amanhece

            Lá nos longes do Futuro,

            Não o meu, que um Fado escuro

            De negros fios só tece...

            Pátria! tudo me falece

            Para erguer teu esplendor

            Mas do pobre trovador

            Terás o óbolo pobre

            No peito um Coração nobre

            Na lira um canto de Amor!...


Referências bibliográficas

 

Festas e diversões. Minas Gerais. Órgão Oficial dos Poderes do Estado, Minas, ano IX, no 211, 13 ago. 1900. p. 4, c. 1-2.

 

Festas e diversões. Minas Gerais. Órgão Oficial dos Poderes do Estado, Minas, ano IX, no 248, quinta-feira, 20 set. 1900. p. 13, c. 4 e p. 14, c. 1

 

Matta, Edgard. Tijuco – lendas e tradições. In: Festas e diversões. Minas Gerais. Órgão Oficial dos Poderes do Estado, Minas, ano IX, no 249, 21 set. 1900. p. 10, c. 3-4; p. 11, c. 1-3. no 250, 22 set. 1900. p. 3, c. 2-4; p. 4, c. 1-2. no 251, 23 set. 1900. p. 3, c. 3-4; p. 4, c. 1. no 252, 24 set. 1900. p. 3, c. 2-4; p. 4, c. 1-2.

 

Festas e diversões. Minas Gerais. Órgão Oficial dos Poderes do Estado, Minas, ano IX, no 253, 25 set. 1900. p. 3, c. 4 e p. 4, c. 1.



[i] Andrade Muricy, em Panorama do movimento simbolista brasileiro, diz que a data do nascimento de Edgard foi 19 de outubro de 1878, e viveu “28 anos, quatro meses e sete dias”.

[ii] Em uma das crônicas denominadas “Ecos”, Edgard usa, de novo, a palavra menobiapava. Entretanto, no romance Acayaca, de Joaquim Felício dos Santos, edições de 1866 e de 1894, constam membyapara e membyapaba, em trechos diferentes.

[iii] No texto de base do jornal Minas Gerais está eterna. Parece-nos que etérea seria mais do uso de Edgard Matta.